A feia e o sonambulismo

A calmaria chega a incomodar os ouvidos. Tira o sono a falta de um ruidinho, por insignificante que seja. A noite alta e fria, o silêncio ensurdecedor faz com que a penumbra fique com um ar fantasmagórico. Apenas o ruído das sopradas de vento, próprias do mês de agosto, se faz ouvir quando bate na cumeeira do sombrio casarão. O cenário que se vislumbra é assustador.   Entremeio às rajadas brandas  de vento, os ouvidos mais aguçados identificam o som do canto de uma corujinha preta, aquela que quando canta é prenúncio de maus agouros.  A cerração que embaça a vidraça, forma desenhos abstratos que ora têm jeito de santo, ora se parecem com demônios. Na altura do décimo terceiro degrau da cinzenta escadaria, dorme alguém  que vez ou outra tem crise de sonambulismo. Deve ter pouco mais de  dezessete anos, um metro e sessenta de altura e deve pesar uns  55 quilos, bem distribuídos.  Seria de extrema beleza física não fossem os maltratados cabelos ouriçados,  roupas puídas e esfarrapadas e dentes escuros por causa do indiscriminado uso de tabaco e drogas mais fortes. Nunca, em nenhum momento, alguém reparou nela, o olhar insinuante e travesso, a inteligência e principalmente a voz e encantadora que possui. Nas noites quentes de verão, quando o perfume das Damas da Noite impregna o ar, é comum ouvir-se  uma voz  macia que se faz acompanhar por um piano que ninguém sabe onde está. Pouca gente sabe que a dona daquela voz é a pequena feinha que mora no andar de cima do casarão em ruínas.  Ninguém imagina que aquele rascunho de mulher seja tão talentoso. O velho relógio que fica no alto da porta principal do salão mor da residência, marca meia noite e meia.  No topo da escadaria surge ela – a menina – com uma lamparina à altura do rosto e com passos  lentos porém decididos, desce lentamente e vai até a cozinha onde enche uma travessa  de fubá, adiciona duas ou três colheres de açúcar, fermento e leite,  despeja tudo em uma assadeira já devidamente untada e leva ao forno. Senta-se na única cadeira que há próxima à grande mesa de centro, tira do sutiã um cigarro de cor escura, estica o braço para alcançar uma caixa de fósforos e ali dá tremendas baforadas. Êxtase, prazer, viagem…. Parece que está em outro mundo. Pouco mais tarde, lá fora tudo volta ao normal. Já se escuta o barulho das sirenes, buzinas,  ronco de motores e frenagens de veículos mais apressados. O alarme do fogão agora apita, sinal que o bolo de fubá está pronto. É hora de saborear  aquela delícia. O bule de café fumega. Os bolinhos de mandioca, douradinhos pela gema de ovo mexido, espera por bocas ávidas por uma alimentação saudável e original. A pequena feia, porém, não participa dessa ceia. Ela volta para o seu quarto, deita-se e, como se nada estivesse acontecido, continua dormindo.  Fizera tudo sob o efeito do sonambulismo e das drogas consumidas no dia anterior à sua interação. A rotina naquele hospital para recuperação de drogados volta ao normal.

Benedicto Blanco – Jornalista, escritor e historiador